Joana era perita em camuflar as suas traquinices, acreditem, eram mãos cheias delas! Tantas que teve que criar um mundo paralelo. E se assim tinha que ser, melhor o fez: arregaçou as mangas e pôs a cabeça a trabalhar.
Esguia e ágil, percorria, a correr ou a andar, os vastos campos vizinhos trepando às árvores, ora castelos ora caravelas, conforme a fantasia do momento. Mas o seu mundo era como afirma: seu. Começou por não entrar ninguém e acabou por não poderem entrar! Por isso as fantasias tinham que ser reais. Ou que se confundissem com isso. E quanto maiores eram, menos espaço para entrar… Mas era bonito vê-la correr, espalhando o perfume dos seus cabelos ao vento, naqueles lugares verdejados e mágicos.
Numa dessas vezes em que se encontrava empoleirada numa figueira, na pele da uma amazona em risco, atirou com um figo bem na cabeça de uma outra criança que se encontrava no local à hora errada e caiu! Menos do que o espaço de tempo utilizado para dizer “merda!” saltou para o chão e abeirou-se do sinistrado.
- Matei-o!... Era a brincar, não queria matar ninguém. Foi sem querer… Dizia isto abanando-o cuidadosamente, porque estava assustada em vir a piorar as coisas.
Deitado e a ouvir tudinho, o rapaz quase que deixou escapar um sorriso quando lhe surgiu “relampejantemente” a maneira em como se vingar da intrusa! Aqueles eram os seus domínios, ninguém, ou melhor, nenhum outro puto podia aceder àqueles territórios. Tinha-os ganho por mérito próprio. E ainda por cima uma menina! Era preciso ter lata! Tinha que a pôr a chorar – continuou a fazer-se de morto. Até recebeu um ligeiro pontapé no traseiro, mas só o fez ficar, ainda, mais determinado. Ela tentou abrir-lhe as pálpebras, com os seus dedos pouco asseados para o evento, mas não quis sobrepor a pressão que ele fazia para não se denunciar e largou-as.
Cada vez era mais verdade ele estar morto e ela era a responsável! Nem queria imaginar o que lhe ia acontecer quando todos soubessem na escola: a professora, as colegas, os irmãos… os PAIS! Estava perdida. E nem sequer tinha feito os trabalhos de casa. O melhor era fazê-los assim que chegasse, sempre poderia servir como atenuante, já que era raro tê-los feito quando perguntavam por eles. Mas isto não tem solução. Se está morto, já não acorda! Abanou, agora, com mais convicção. Precisava que ele acordasse para ir fazer os trabalhos de casa. Nunca mais sairia para a rua sem os fazer!
- Acorda, pá, vá lá! Tenho que me ir em...
…Ainda não tinha acabado de dizer a última palavra, recebeu no rosto um grito fantasmagórico que lhe pôs os cabelos em pé. E não foram só os cabelos que se aguentaram firmes, todo o resto da Joana ficou instantaneamente paralisado de medo. Ele levantou-se e reparou que era mais alto. Caminhou em círculo à volta dela e ficou sensibilizado com a expressão dela. Era uma menina, não dava para brincar, se não o que diriam os outros se o vissem naqueles propósitos. Mas tinha uma cara gira, diferente, especial...
Assim que veio a si, caiu por terra o fardo da responsabilidade e, principalmente, o peso do medo do que lhe poderia acontecer quando se viesse a descobrir que tinha morto alguém. Ficou, momentaneamente, mais aliviada. Mas só por momentos. Aquele frente a frente não estava propriamente nos seus planos, ou melhor, nas suas fantasias. Não era por acaso que subia às árvores (que se refugiava, é o mais adequado). Mas o inopinado estava ali à frente dela. E vivo, por sinal. Agora já não sabia se lhe dava mais jeito estar morto! Não, isso é que não, seria bem pior. Mas, também não era nada fácil lidar com aquela nova experiência. Bom, se é uma experiência nunca se sabe ao certo o resultado. E, neste caso, nem sequer as hipóteses do que pode acontecer. A surpresa era paralisante. Já não pensava nos trabalhos por fazer. Aquilo era bem pior, não se sabia o que poderia acontecer. Os trabalhos, ou ralhavam com ela ou levava uma tareia. Não havia a dor do sobressalto da punição surpresa que lhe seria destinada. E bem no meio deste turbilhão de sensações angustiadas e pungentes recebeu um passar de mãos no rosto. Não sabia o que era aquilo. Os pais já lhe tinham dado festas e carinhos, mas mais ninguém e muito menos um total desconhecido. Que dia cheio de surpresas! Uma atrás das outras e nunca mais acabavam! Cruzou o olhar com o dele, sorriu ligeiramente e pediu desculpa antes de começar a correr para o seu mundo. Lá era senhora e dona de tudo. Sabia como as coisas acabavam, porque era ela que as criava com a imaginação de menina arisca. O coração saltava mais pesado desta vez, mas nem isso a fez parar. E muito menos o facto de ele ter-lhe pedido para esperar. Foi tudo em vão. Pelo menos para aquele dia...
Ele gostou daquele rosto, macio e diferente. Era rosto com bastantes e boas potencialidades. Era um rosto que escondia fantasias e aventuras que ele, por vezes, também sonhava. Era a primeira vez que desejou ter uma menina como amiga. Não sabia o que os outros iam dizer, mas já não interessava tanto.
Não sei como acaba a história, mas também não a quero acabar. Muito pelo contrário, quero que dure. Quanto? Que dure, simplesmente, enquanto houver imaginação para continuar com a história. Enquanto cada passar de mãos no rosto tiver o sabor de ser o primeiro, que dure. E, enquanto durar, cada dia será de festa no Olimpo e os Deuses dançarão em honra de um amor assim tão inocente e belo.